Sobre a grande lagoa da fazenda Gameleira o Sol nascia com o mesmo esplendor com que se punha e sua luz abençoava aquela terra prometida.

Sobre a grande lagoa da fazenda Itacoatiara o Sol nascia com o mesmo esplendor com que se punha e sua luz abençoava aquela terra prometida.

O dia amanheceu cinzento e ameaçando chuva. Mesmo assim, bem cedo, o coronel Raimundo Soares de Brito já estava no grande salão de refeições da Casa Grande, em companhia de sua esposa, Sinhá Maria Rita do Nascimento Brito e de seus dois filhos, sinhazinha Florinda e sinhozinho Tiago, ela com 16 anos e ele com 20. O assunto era o recente desligamento do Brasil em relação à coroa portuguesa e a confusão da resistência dos fazendeiros campomaiorenses ao novo Comandante das Armas. O coronel, com vagar e claramente, expunha a situação aos seus familiares. Dizia que todos sabiam que aquele fato havia acontecido em 9 de janeiro de 1822. Tinha sido nesta data que o Príncipe Regente do Brasil tomara a decisão mais importante para a futura Nação Brasileira, exclamando: “Se é para o bem de todos e felicidade geral da Nação, estou pronto! Digam ao povo que fico”. Com esta decisão histórica, Dom Pedro I decidiu em contrário à ordem recebida de retorno a Portugal. Rompia, assim, representando o Brasil, a subserviência do país em formação à coroa portuguesa. E o fez atendendo a um baixo-assinado dos maçons liberais radicais. Mas a coroa portuguesa não aceitou a rebeldia de Dom Pedro. Apesar de D. João VI — e com um sorriso maroto, o coronel esclareceu: seu nome completo é João Maria José Francisco Xavier de Paula Luis Antonio Domingos Rafael , Rei de Portugal, se posicionar favorável à independência proclamada por seu  filho, D. Pedro I, inclusive apoiando-o nesse sentido, desejava que a Província de Grão Pará e Maranhão continuasse Vice-Reino de Portugal (ou seja, uma colônia portuguesa no Brasil), respondendo diretamente à Coroa Lusitana, dada a sua situação geográfica favorável ao acesso dos navios europeus e ao grande rebanho bovino que nelas se criava e, também, à rica lavoura de algodão, milho, cana de açúcar e frutas como o caju, tudo nas mãos de criadores portugueses sediados no Piauí, no Maranhão e no Pará. 

— Por isto foi que a coroa nos mandou o Major João José da Cunha Fidié para assumir o posto de Comandante das Armas Portuguesas em nossa capital, Oeiras. Mas, ainda que portugueses ou descendentes, como é nosso caso, não desejamos esta servilidade à coroa e o motivo é que nos sentimos usados por um rei que, antes, nunca nos havia dado valor. Eis a razão de nossa rebeldia.

A mucama de sinhá era bonita, de sorriso amplo e olhar buliçoso, esperto e desconfiado.

A mucama de sinhá Maria era bonita, de sorriso amplo e olhar buliçoso, esperto e desconfiado.

O coronel silenciou para tomar o café com leite que a jovem mucama de sua esposa servia em sua xícara. Ele a olhou escrutinadoramente. Era uma jovem negra muito bonita e perfumada. A mesma que havia entrado em seu quarto quando ele, nu, se enxugava. A moça tinha traquejo no serviço e o coronel permaneceu observando a meticulosidade com que a moça agia no serviço matinal. Impecável. Até demais. Raimundo não conseguia identificar aquela jovem rapariga. Conhecia todos os seus empregados e todos os escravos, alforriados ou não. Conhecia bem as famílias de todos eles e com certeza a mucama de sua esposa não pertencia a nenhuma delas. Pretendia, depois, conversar com dona Maria Rita para saber quem era a jovem. No momento, tinha como prioridade colocar toda a família a par da confusão que se armava na província de Grão Pará e Maranhão, na qual o Piauí estava inserido. E este assunto era prioritário porque a família do coronel Segismundo Pacheco Gayoso, portuguesa ferrenha, era totalmente contrária ao movimento que Raimundo começava a liderar em Campo Maior. Seu filho, Thiago, estava de namorico com a sinhazinha Benilde, filha de Segismundo. Os dois coronéis estavam em franca rota de colisão e Raimundo desejava preservar sua família de maiores confusões. Era preciso que o rapaz compreendesse que a família de Segismundo era adversária política da família Brito e se afastasse da jovem. A relação entre os dois fazendeiros tendia a azedar muito e quem estivesse no meio da briga iria sofrer, com toda a certeza. Raimundo não desejava isto para seu primogênito.

A nave da Igreja Matriz de Campo Maior.

A nave da Igreja Matriz de Campo Maior.

O rapaz, contudo, ouvia as explanações de seu pai sem muita atenção. Seu pensamento estava na figura esguia de Benilde; no seu riso espontâneo e inocente; na sua brejeirice de menina-moça e nos olhares que lhe dispensava, quando se encontravam nas missas de domingo, na Igreja de Nossa Senhora da Expectação, no centro de Campo Maior. Ir até lá tinha-se tornado extremamente agradável, depois que Thiago tivera sua atenção voltada para a jovem rapariga. A viagem de charrete demorava mais ou menos hora e meia, mas sua mãe a fazia religiosamente porque era muito católica. E como boa mãe, levava consigo sua prole, mesmo que os dois protestassem e fossem toda a viagem reclamando do “castigo”. Florinda, irmã de Thiago, detestava visceralmente aquela história de senta, levanta, ajoelha, senta, levanta, ajoelha… E Thiago não rezava o “Eu Pecador” nem a chibata. Não aceitava a parte em que o fiel tinha que dizer: que pequei minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa”. Este negócio de culpa não lhe descia pela garganta. Florinda, por sua vez, detestava a parte da oração em que o fiel tinha de pedir e rogar a todos os santos, nomeando-os, que rogassem a Deus pelo desgraçado e infeliz pecador etc, etc, etc… Ela odiava ser obrigada a admitir que era uma pecadora diante do Deus cristão. Principalmente detestava a tal confissão que era obrigatória, semanalmente. Não tinha nada a contar ao vigário que, apesar de tudo, ficava insistindo em saber até de intimidades que ela desconhecia. Era uma tortura ajoelhar-se no confessionário e falar de coisas que desconhecia ou que fizera inocentemente e ser julgada por um homem que mal podia ver. E depois tinha as tais penitências. Por qualquer coisa boba, era obrigada a se ajoelhar e rezar um terço, no mínimo. Aquilo era revoltante. Seu único e persistente pecado era justamente a revolta de ser obrigada a permanecer na nave da igreja, sozinha, rezando penitencialmente. No fundo, ambos, ela e o irmão, não iam com a cara desse Deus punitivo e isto já havia sido motivo de grandes discussões com a mãe. Mas nenhum dos dois lograra se livrar da “terrível” obrigação das manhãs de domingo. Dona Maria Rita controlava a família com mão de ferro e o coronel costumava dizer, jocosamente, que se não saltasse da cama muito rapidamente, sua esposa tomaria as calças para si e ele teria de vestir as saias durante o resto do dia. Isto irritava a mulher, mas provocava gargalhadas nos amigos do coronel.

Os coronés nordestinos eram assim. Não dispensavam o chapéu panamá e a camisa de linho, ainda que fossem muito caros.

Os coronés nordestinos eram assim. Não dispensavam o chapéu panamá e a camisa de linho, ainda que fossem muito caros.

— Eu espero — disse o coronel —, que todos tenham compreendido a razão pela qual eu me vejo obrigado a abraçar a causa que abraço. E espero que vocês não se oponham a mim, pois não vou aceitar nenhuma resistência dentro de minha própria casa.

Suas últimas palavras calaram fundo em todos. Os olhares estava fixos em seu rosto e este, como se fosse de pedra, lançava a cada um, um olhar duro de quem não admite contestações. Sem se darem conta, todos assentiram com meneios de cabeça. Ao fundo da sala, discretamente oculta das vista por uma grande pilastra, a jovem Luísa observava atentamente o que se passava e gravava de memória as expressões de cada membro daquela família. Quando o coronel se levantou, discretamente ela abandonou o grande salão, deixando para outra a tarefa de retirar a mesa. Sabia que devia acompanhar sua patroa à missa…

Esta é a Igreja Matriz de Campo Maior. Hoje, cercada de casas, ela, antigamente, reinava absoluta em um largo amplo e cheio de juazeiros e acácias de flores em penca, amarelas e belas.

Esta é a Igreja Matriz de Campo Maior. Hoje, cercada de casas, ela, antigamente, reinava absoluta em um largo amplo e cheio de juazeiros e acácias de flores em penca, amarelas e belas.

A nave da Igreja estava, como sempre, lotada. Era difícil encontrar um lugar, por isto o coronel mandara fazer um banco especialmente para a família; e para que isto ficasse bem claro, havia o nome de cada um deles gravado numa chapinha afixada na parte de cima do encosto, de modo a ser bem visível. Assim, quando chegavam, mesmo que atrasados, seus lugares estavam reservados. Até o dele, coronel, também estava lá, mesmo que raramente seu dono estivesse presente. Para desgosto dos jovens, o banco se situava bem à frente do altar e diante dos olhos vigilantes e censurosos do vigário. Mas naquela manhã de domingo o jovem Thiago não oferecia resistência. Desde já há mais ou menos dois meses que acompanhava a mãe todo solícito. A esperta senhora não demorou a perceber que aquilo se devia ao interesse do filho pela moçoila de olhos negros e pele alva como nuvem de algodão e que se sentava à esquerda e dois bancos mais atrás do deles. Sabia de quem era filha a tal moça e até então não tinha tido motivos para preocupações. Pensava mesmo que o namoro dos dois seria vantajoso por dois motivos: primeiro, aproximaria as famílias, sempre arredias entre si. Segundo, colocaria os dois leões frente a frente e obrigados a pelo menos uma trégua na querela que sempre mantinham surdamente entre si. Mas naquele domingo ela viajou mergulhada em pensamentos sombrios. A guerra entre a família Brito e a família Gayoso estava começando e com certeza não acabaria bem. Conhecia os dois homens e sabia que ambos eram turrões e teimosos. Olhou de soslaio para o garboso rapaz que cavalgava ao lado de sua carroça. Jovem, forte, alto, pele queimada pelo sol devido à lide dura da fazenda, olhos caramelados claro, peito largo e uma expressão de alegria que emanava de  todo o seu corpo. “Como se sentirá quando se vir forçado a abandonar seus sonhos?” Este pensamento a angustiava. Era apaixonada pelo filho, de quem tinha grande orgulho. Embora o rapaz tivesse recusado terminantemente ir para a Europa estudar Direito, como geralmente faziam os filhos de famílias abastadas daquela região, ele estudara até o segundo grau e não era um ignorante. Falava bem o latim e o grego e se saía muito bem com a língua francesa, graças a ela que falava impecavelmente este idioma. Era culto em História  Antiga e discorria com fluidez sobre a velha Grécia e a antiga Roma. Além disto, era um rapaz muito educado. Tinha certeza de que seria um excelente partido para a jovem filha do Sr. Segismundo. A dificuldade seria convencê-lo disto, sem contar o Sr. Raimundo. Intimamente a mãe se colocava incondicionalmente ao lado do filho.

Chegaram à igreja e a missa ainda não tinha começado. Muitas famílias flanavam no átrio, esperando o momento de entrar na igreja. Ninguém queria receber a pecha de beata, que a faria discriminada entre as outras pessoas. Todas as mulheres o eram, na verdade. Mas tentavam disfarçar. Os olhos de Thiago buscaram sofregamente aquela por quem seu coração batia. “Onde está ela?” perguntava-se sentindo a boca seca e as mãos frias. Sem poder aguentar-se mais, pediu licença à mãe e se afastou, mergulhando pelo meio da gente em busca da silhueta ou da voz tão amada. E foi o riso cristalino da jovem que lhe deu a indicação do lugar onde poderia ser encontrada. Ele se encaminhou para o lado direito da igreja, onde havia uma linda “Três Marias” florida. Sob as longas galhadas da árvore havia uma roda de jovens filhas de fazendeiros. O rapaz estacou. Como se aproximar? O que dizer? Nunca, antes, se haviam falado! Foram apenas olhares furtivos, nada mais.

O Ipê pode viver por mais de cem anos. Mas os dois pés que havia próximo à Igreja Matriz de Campo Maior há muito tempo foram cortados.

O Ipê pode viver por mais de cem anos. Mas os dois pés que havia próximo à Igreja Matriz de Campo Maior há muito tempo foram cortados.

Foi Benilde que decidiu por ele. Assim que seus olhos o encontraram ela cochichou alguma coisa às outras moças que lhe lançaram olhares furtivos e soltaram sorrisos marotos. Benilde afastou-se do grupo acenando levemente com a cabeça para que ele a acompanhasse. Thiago foi às nuvens. Ela era mais decidida que ele. Acompanhou-a sempre mantendo distância até que a moça sumiu atrás da igreja. Então, acelerou o passo e a encontrou sob um pé de Ipê roxo florido, na ribanceira que descia até o calçamento da rua, um pouco mais abaixo. Quase correu até Benilde, mas se conteve. A moça, de costas para ele e segurando um “copo de leite” nas mãos o aguardava. Não lhe era possível ver o nervosismo de que a jovem estava tomada, pois a densa roupagem que a recobria, apesar do calor, impedia-lhe isto.

Sem saber o que dizer, Thiago chegou perto de Benilde. Olharam-se e o sorriso maroto da jovem se desfez. Agora, ela estava embaraçada. Fôra ousada demais. Se alguém os visse e maldasse alguma coisa, e maldariam com certeza, o mexerico iria terminar desaguando nos ouvidos de seu pai. Já estava arrependida de sua ousadia, mas o rapaz quebrou aquela situação embaraçosa e ansiogênica, antes que ela saísse correndo de volta ao grupinho em que se sentia protegida.

— Finalmente, senhorita, nós pudemos falar a sós — disse ele e sua timidez começou a se esvair rapidamente ao som de suas primeiras palavras. — Há muito que é meu desejo falar-lhe.

— E… E o que o senhor deseja me dizer? — A voz lhe saiu num fio. Sua boca estava estranhamente seca e seu coração pulava feito doido dentro do peito. O que era que estava sucedendo com ela? Nunca imaginara que seria daquele modo. Como era difícil falar com ele tendo a sombra ameaçadora de seu pai a lhes rondar por perto.

— É que… É que… Bom, a senhorita me atrai. Desde a primeira vez que a vi lá na nave da igreja, naquele vestido cor-de-rosa, que nunca mais sua imagem me saiu da lembrança…

E de repente sua boca secou. Os olhos da jovem haviam-se arregalado. Ela abriu a boca para dizer alguma coisa, mas em vez disto rodou nos calcanhares e disparou correndo em busca da proteção de suas companheiras. O chão se abriu aos pés de Thiago que ficou pasmo e se acusando de desajeitado. Por que tinha ido com tanta sede ao pote? Por que tinha revelado a ela o seu segredo?

Zonzo, ele ficou dando voltas ao léu, desconcertado. De repente a Igreja lhe pareceu pequena demais e incômoda demais. Como entraria ali, se a mulher que sentia amar, com toda a certeza, o olharia com desprezo ou, pior, nem mesmo se dignaria a lhe dar um olhar?

Decidiu que não ficaria. Sem falar nem com a mãe nem com a irmã, foi até seu cavalo, montou e se afastou a galope.

Nem percebeu que dois olhos ansiosos o acompanhavam, aflitos e úmidos de lágrimas, assim com não percebeu o olhar maroto e o sorriso malvado que bailava na face negra da mucama de sua mãe…