Orozimbo aprontando das suas me causa preocupação.

Orozimbo aprontando das suas me causa preocupação.

Eu estava em acalorada discussão com um vizinho sobre a corrupção em nosso país. Ele se surpreendeu quando eu lhe disse que vai levar no mínimo meio milênio para que nós nos livremos do vício nacional da corrupção. Ele acreditava piamente que só existia corrupção entre os polititicas, mas quando lhe mostrei a reportagem da Rede Globo no Bom-Dia Brasil, mostrando o DETRAN de São Paulo colocando câmeras de vigilância nos carros de provas e nas pistas para avaliação de candidatos a motoristas, ele teve de refazer sua convicção. Quando nós, gente comum, Zé Ninguém, apelamos para a propina a fim de conseguir alguma vantagem em qualquer lugar, estamos praticando ativamente a corrupção. E se somos corruptos entre nós, povão, como é que nos arvoramos em juízes dos Polititicas, já que eles saíram de dentro da massa em que nos constituímos enquanto Nação? Como podemos levantar nossas vozes contra os empresários brasileiros que, inseridos em um meio totalmente corrupto, não podem sobreviver sem se inserir no costume nacional brasileiro de roubar a própria consciência?

Eles não são culpados sozinhos. Afinal, são produtos de nosso meio totalmente corrompido. Eles nos mostram isto e nos faz sentir vergonha de nós mesmos.

Eles não são culpados sozinhos. Afinal, são produtos de nosso meio totalmente corrompido. Eles nos mostram isto e nos fazem sentir vergonha de nós mesmos.

Toda a Nação Brasileira reza pela cartilha do “Venha a nós o Vosso Reino, mas ao Vosso Reino, NADA! Eu quero o que É meu; o que é seu, você que defenda e brigue por ele”. Queremos ter direito a tudo, mas odiamos visceralmente ter que nos comportarmos honestamente com nosso semelhante. O jovem que foi às ruas gritar contra os corruptos e que, depois, dentro do ônibus, assenhoreia-se dos bancos reservados por Lei aos idosos, gestantes ou deficientes, não tem nenhum direito de atirar pedras nos que têm telhados de vidros. O senhor posudo, cheio de Drs antes do nome, que também foi às ruas gritar contra os corruptos de colarinho branco, mas que, à noite, vai ao supermercado e estaciona seu carro em vaga destinada a idosos e deficientes, também não tem direito de atirar a pedra em seu semelhante. Só o faz porque não está lá, no lugar dele. Se estivesse e acreditasse, como ele acredita, que a impunidade o salvará de qualquer ação corretiva, certamente cometeria os mesmos crimes. Ou, talvez, até piores. O “guardador de carros” que o intimida a fim de lhe tomar dinheiro bem debaixo das ventas das autoridades impotentes, embora a ação dos tais “guardadores de carros” seja considerada legalmente um crime, também é corrupto e, pior, violento. Mas com certeza, foi para as ruas, no “Oba! Oba” jogar pedras no telhado de vidro dos seus irmãos de desdita. Aliás, irmãos que eles e todos os demais elegeram para enfrentar uma prova difícil de ser ganhada. 

Nossa conversa estava quente, quando, para minha surpresa, nos chega meu velho amigo Orozimbo. Assim que o vi não agüentei e corri a abraçá-lo. Para minha surpresa, ele correspondeu calorosamente ao meu abraço, o que não é de seu feitio. Então, afastando-me dele, olhei-o atentamente. Estava mais magro e seu olhar um pouco opaco. A expressão facial estava dura, expressando mágoa.

— Onde você andou metido, meu velho? Por que desapareceu desse jeito?

— Vancê podi pidi licença aí ao seu amigo e entrá em casa cumigo? Véi tá doido pur um café amargo.

"Véi tava preso"

“Véi tava preso”

Assim fiz e entramos em casa. Ele, demonstrando muita alegria, sentou-se em seu toco, tirou o velho cachimbo do bolso e aquele fumo oloroso do qual nunca mais se separou, acendeu o pito e se entregou ao prazer de pitar, olhar distante, como se bebesse a paisagem a grandes goles. Eu o deixei lá e fui coar no pano um café como ele gosta – forte e sem açúcar. Trouxe-lhe a caneca e ele sorveu a bebida amarga com prazer. Só então, falou.

— Véi tava preso.

Demorei um pouco para assimilar aquela informação chocante. Eu não conseguia imaginar meu velho amigo preso. Era absolutamente inconcebível. Mas, com a boca seca e desorientado, sentei-me diante dele e o olhei atentamente nos olhos.

— Preso…? Você? Quem conseguiu tamanha façanha?

— A puliça, home de Deus. Quem mais?

— Sim, quer dizer… sei que a polícia é quem prende. Mas qual foi a razão? O que você fez para ser metido em cana?

— Ora… — Ele permaneceu em silêncio um tempo e seu olhar se esvaziou, como se estivesse olhando para o passado.

O salão do Terreiro de Mãe Menininha de Gantuá.

O salão do Terreiro de Mãe Menininha de Gantuá.

— Bom… Véi foi à Bahia pra visitá o terrero de Mãe Minininha, num sabe? Tava cum sordade. Entonce, véi arranjô a passage de graça, devido à idade avançada, num sabe, e lá fui. O netim ficô na casa de um amigo dele, jogando aquelas bestera qui véi detesta. Lá no terrêro, na hora da gira, munta gente bunita tava presente. Véi ficô vendo tudo inté o fim. Entonce, saiu do terrêro era mais ou meno meia-noite. Já tava caje chegando no albergue onde tinha cunseguido lugá pra drumi, quando dois mulequi surgiu pra me tomá dinhero. Logo deste véi qui tem o borço furado desdo os tempo da iscravidão, ora! Mandei eles ir à merda e fui andando, mas os bixim, num sabe, era metidim a valente e se ajogarum na capoeira pra riba deu. Num prestô. Véi é mestre, home. Num vai deixá barato nem qui a vaca tussa. E véi desceu o pé nos arreliado, qui tavam inté armado cum arma branca. Um, ficô inconsciente logo na primeira pezada. O otro deu de corrê aos berro de “Mestre Rabo de Cobra! Socorro!“. Orozimbo ficô isperando o tar mestre vir. Num pudia saí dali de rabo entre as perna, nhor não. E cuma é qui Exu ia ficá se este fio dele corresse do pau? Véi isperô. O tar Rabo de Cobra veio. Nóis nos ingarfinhamo nos pé, nos tapa e nas pernada. O tar sujeito era bom mermo na Angola e jogava munto bem a São Bento Médio, mas num cunhecia o jogo da Cavalaria e apanhô feito fio de benção, num sabe? Aí, quando véi tava terminando de desancá o peste, a puliça chegô e deu voiz de prisão pra Orozimbo. Véi bem qui pudia ter descido o pé neles tombém, mas cuma era otoridade, véi se deixô levá. Na delegacia ixpricô o qui tinha acuntecido, mas o delegado num deu uvido às rezão do véio, pode? Dixe qui véi tinha infringido um tar de ECA e, pur isso, divia de ficá preso. Ele mandô colocá eu dentro de um chiqueirim deste tamanhin, qui num dava pra cinco indivíduo, mas tinha lá dentro mais de uma dúzia. E fedia a cocô e mijo qui era um nojo. Além disto, os bicho lá dentro num tomava banho divia de fazê um ano, pois era uma catinga de suvaqueira qui vixe Nossa Senhora, home!

Fiquei pasmo. Meu velho Orozimbo em cana. Enjaulado com verdadeiros animais desumanizados. Certamente não tinha prestado.

E não prestou.

Orozimbo conheceu a ante-sala do Inferno.

Orozimbo conheceu a ante-sala do Inferno.

— Véi premero buscô um lugá pra pudê ao meno sentá, mas o aperto era danado. Véi foi impurrado prum cantim mais fedorento qui os otro e aí viu qui tava na sentina du lugá! É, home, os bicho impurrarum este véi pra riba da merda deles. Os bicho tinham de cagá e mijá ali mermo e tinham escuído aquele canto lá no fundo do chiqueirin pra fazê as necessidade. Tinha mijo e merda a dar cum pau. Aí Orozimbo danou, ora se danou! E deu de gritá chamando o delegado. Mas o home divia de tê os uvido intupido cum cera, num sabe? Ninguém veio atendê os chamado de eu. E ainda pru riba, os bixim se danarum cum o berrero deste véi e vierá batê in eu. Num prestô. Desci o pé nos peste e em pôco tempo só tinha de pé o véi Orozimbo. O resto tava tudo gemendo no chão. Só entonce é qui apareceu um nego magrela qui, vendo aquilo, oiô pra mim cuma se visse o capeta im pessoa e correu pra chamá o delegado. Este veio, viu o istrago, arregalô os ói e ficô passando a mão na carapinha ixcramando: “Meu Deus! Cuma é qui vô ixpricá isto pros meu superiô? Foi o véi aí qui derrubô tudo isto, foi?”

O magrela dixi qui sim. Ele mandô tirá Orozimbo dali, meteu umas argemas nos punho deste nego véi, e mandô levá eu pra sala dele. Lá, véi ficô argemado num cano de ferro o resto do dia e a noite toda. Só meio-dia do dia seguinte foi qui vieram uns ortos sordados e levarum Orozimbo pra tar de pinitenciara. Acho inté qui eles se isquecerum qui nego véi tombém come, num sabe? O tempo todo qui véi ficô na delegacia, ninguém se alembrô de lhe dá de cumê. Uma coisa horrive, home. Véi nunca pensô qui aquilo lá fosse daquele jeito. Quando véi chegô na pinitenciara, o istombo dele fazia um baruião daqueles.

Me jogarum lá cuma se véi fosse um bicho, um jumento, sei lá! E véi viu uma gente qui num era mais gente. Aquilo tudo já era diabo in vida, home. Os oiá era de uma mardade de arripiá os pelo inté de lobisome. Mar os sordado se arretirarum e um grupo de gente horrive cercô este véi. E lhe disserum qui ali dentro quem mandava era o Chulé e qui este véi tinha de si curvá a ele. Ora, vê se pode! Orozimbo curvando a cabeça pra um Chulé? Logo este véi? Num prestô.

— E o que você fez, meu velho? — Perguntei, apreensivo. Conhecia bem o mau gênio de Orozimbo e não era nada bom o que ele contava.

— Ora… Deixa véi continuá, deixa?

— Tudo bem, continue. Mas é que sua situação foi humilhante, revoltante.

— E apois! Orozimbo viu qui ô se impunha de premera, ô tava frito. Entonce, caminhô pra um negão inorme, qui inté paricia cum aquele tar de Xuazinega lá do cinema e pidiu qui quiria cunhecê o tar Chulé. O negão ficô oiando pru véi cum cara de ispanto. Entonce, juntô quatro capueirista ao redor de véi e ficarum balançando o corpo de um pra otro lado, se rindo de eu, cada quá segurando um par de cacete de maculelê. Aí é qui num prestô mermo, num sabe? Véi detesta se vê ameaçado. Mas ficô quieto. Pra que descê o pau nuns Zé quarqué, se pudia descê o pé no Chulé? Os bichus ruim pegaram véi pelos braço e lá se fumo rumo do muro lá nos fundo do presídu. Quando nóis passava perto das grade, dois sordado nos oiarum com cara de peste dos inferno e um deles dixe pro ôtro: “Ih, o Chulé já vai descabaçá o véio. O coitado vai perdê o cabaçu do cu é agora. Vamo vê?”

— Virgem Santa, Orozimbo! E você foi…?

— Arre égua, home! Vancê tá istranhando véio, é? Nem o capeta im pessoa faiz isso cum este véio, diabo!

— Calma, é que eu estou aflito. A situação não era boa para você! Sozinho, na penitenciária, com um criminoso perigoso querendo…

— Véi num tava sozim, nhor não — cortou-me ele. — Véi tinha Exu ao lado e pudia vê ele se rindo às gargaiadas. Ele sabia o qui véi ia fazê e veio dá uma ajudinha, ora. 

— Exu? O Tranca Ruas?

— Não! Exu, o mensagero do meu Candomblé. Esse aí num é de nóis, ora. Esse aí é Egum e Orozimbo num qué nada cum Egum.

— Está bem, continue que eu já estou ficando em pânico.

— Ora… Apois bem. Véi foi levado inté um mulato inorme, maió qui o negão qui acumpanhava o véi. Ele tava acocorado jogando carta, mas qundo a gente chegô, ele se alenvantô e olhô pro negão, preguntando?

— Qui é qui tu qué?

— O véio aqui quiria cunhecê o Chulé. Aí, nós trouxe ele pra cunhecê vancê.

O sujeitão oiô pra eu cum cara de pôcos amigo e me preguntô, mar criado:

— Quem é vancê, nego? E o qui feiz pra vir cá pra este inferno?

— Véio arrespondeu. Véi é Orozimbo e vei pra cá num sabe pruquê. Aqui lhe dixerum qui ele tinha de abaixá a crista pr’ocê, e cuma este véi num abaixa a crista nem pro capeta im pessoa, pediu pra vim aqui lhe dizê isto pessoarmente.

O homão se virô pra um merdinha bicha, qui tava incuída num canto e dixe, abaixando as carça e pondo o piru pra fora.

— Minhoca, dá um trato aqui no dengoso qui é pra eu fazê a iniciação do véi desrespeitoso. E faiz o boquete dereito, senão eu te dô uma surra braba!

Jogo de Maculelê com facão.

Jogo de Maculelê com facão.

E foi aí que véi Orozimbo se ispaiô, num sabe. No premero vôo acertou o queixo de um dos merda qui tava cum dois cacete de maculelê e apanhô os pau antes qui eles tombém caísse no chão junto cum antigo dono deles. E foi aquela belezura, home. O cacete cantava e os bicho berrava. Cabeça, ombro, custela, braço, canela, pé, jueio, véi quebrô tudo. E num tem a conta, pruqui quando o véi se ispaiô, chuveu bicho pra riba dele, num sabe? Sobrô de pé Orozimbo e o tar de Chulé qui, nu, ficô oiando o véi descê o cacete. Finarmente, nóis dois se encarô. Aí o Chulé caminhô pra perto de um dos qui véi tinha derrubado, abaixo, apanhô os maculelê do cabra qui roncava feito bebê, e dixe: “Vancê é bom, véi. Muito bom mermo. Mas eu sô mió. E cuma num tem ninguém aqui pra eu treiná, vancê chegô na hora. Vou lhe matá, mas cum honra, eu lhe dô minha palavra”. O bicho tava nu. Entonce, véi mandô ele isperá e tombém tirô a rôpa, pois num era justo tê a vantage, num é mermo? E aí o pau cumeu pra valê, pois o peste era bom mermo. Em tudo. Jogava todos tipo de capoeira. E munto bem. Mas eu tinha Exu cumigo e ele, não. E a gente jogô a tarde intera, num sabe? O sor se pôs e nóis tava jogando forte. Véi inté cumeçô a gostá do peste. Fazia tempo qui Orozimbo num incontrava uma fôrma qui desse no seu pé. Agora, ali tava ela. E véi aguentô pruqui Exu lhe deu força. Orozimbo num cumia fazia dois dia, home. Nóis dois, o peste atentado e este véi, quebramo tudo e a puliça teve de vir interrompê a gente. E foi aquele fuzuê. Veio repórte e véi pôde contá o qui tinha acuntecido. A partir daí, véi se viu levado pra tanto lugá qui num sabe nem contá cuma foi. O certo é qui um tar de juiz de dereito mandô sortá o véio, pois os dereito de Orozimbo, garantido por uma Lei qui véi num cunhece, tinha sido violado. E véi veio imbora e tá aqui. Pronto. É tudo.

— Você veio direto para cá? — Perguntei, enternecido. Ele viera para junto de seu amigo de muito tempo. Ainda que estivesse visivelmente cansado. Com tato, consegui que fosse tomar um banho, comesse um pedaço de frango assado com feijão preto e arroz no alho e se deitasse na rede que lhe armei na varanda. Dormiu até o dia seguinte. Quando amanheceu, satisfeito e se dizendo descansado como uma criança, tomou café e lá se foi atrás de seu netim.

E eu fiquei cheio de ternura para com ele… É, tô envelhecendo mesmo…