Eu tive um cão. Chamava-se Veludo.
Magro, asqueroso, revoltante, imundo.
Para dizer em uma palavra tudo,
Foi o mais feio cão que houve no mundo.
.
Recebi-o das mãos de um camarada
Na hora da partida. O cão, gemendo,
Não me queria acompanhar por nada.
Enfim, malgrado seu, o vim trazendo.
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O meu amigo, cabisbaixo, mudo,
Olhava-o. O Sol nas ondas se abismava.
“Adeus!” me disse. E ao afagar Veludo
Nos olhos seus o pranto borbulhava.
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“Trata-o bem. Verás como o rafeiro
Te indicará os mais sutis perigos.
Adeus! E que este amigo verdadeiro
Te conserve num mundo ermo de amigos”.
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Veludo a custo habituou-se à vida
Que o destino de novo lhe escolhera.
Sua rugosa pálpebra sentida
Chorava o antigo dono que perdera.
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Nas longas noites de luar brilhante,
Febril, convulso, trêmulo, agitando
A cauda Caminhava errante
À luz da Lua tristemente uivando.
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Toussenel, Figuier e a lista imensa
Dos modernos zoológicos doutores
Dizem que o cão é um animal que pensa.
Talvez tenham razão esses senhores.
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Lembro-me ainda. Trouxe-me o correio,
Cinco meses depois, de meu amigo
Um envelope fartamente cheio.
Era uma carta. Carta? Era um artigo!
.
Contendo a narrativa miúda e exatada
Da travessia, dava-me importantes
Notícias Do Brasil e de La Plata.
Falava em rios e árvores gigantes.
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Gabava o “steamer” que o levou.
Dizia que ia tentar inúmeras empresas.
Contava-me também que a bordo havia
Toda sorte de risos e belezas.
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Assombrara-se muito da ligeira
Moralidade que encontrou a bordo.
Citava o caso d’uma passageira…
Mil coisas mais de que não recordo.
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Finalmente, por baixo disto tudo,
Em nota bene do melhor cursivo,
Recomendava o pobre do Veludo,
Pedindo a Deus que o conservasse vivo.
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Enquanto eu lia o cão, tranqüilo e atento
Me contemplava e – creia que é verdade –
Vi comovido, vi neste momento
Seus olhos gotejarem de saudade.
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Depois, lambeu-me as mãos humildemente,
Estendeu-se aos meus pés, silencioso,
Movendo a cauda adormeceu contente
Farto dum puro e satisfeito gozo.
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Passou-se o tempo. Finalmente um dia
Vi-me livre daquele companheiro.
Para nada Veludo me servia.
Dei-o à mulher de um velho carvoeiro.
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E respirei. “Graças a Deus já posso”,
Dizia eu, “viver neste bom mundo,
Sem ter que dar diariamente um osso
A um bicho vil. A um feio cão imundo”.
.
Gosto dos animais. Porém prefiro
A essa raça baixa e aduladora,
Um alazão inglês de sela ou tiro,
Ou uma gata branca, cismadora…
.
Mal respirei, porém, quando dormia,
E a negra noite amortalhava tudo,
Senti que à minha porta alguém batia.
Fui ver quem era. Abri. Era Veludo!
.
Saltou-me às mãos, lambeu-me os pés ganindo
Farejou toda a casa satisfeito.
E de cansado foi rolar dormindo
Como uma pedra junto de meu leito.
.
Praguejei furioso. Era execrável
Suportar este hóspede importuno
Que me seguia como um miserável
Ladrão ou como um pérfido gatuno.
.
E resolvi, enfim. Certo é custoso
Dizê-lo em alta voz e confessá-lo.
Para livrar-me desse cão leproso
Havia um meio só: era matá-lo.
.
Zunia a asa fúnebre do vento.
Ao longe o mar, na solidão gemendo,
Arrebentava em uivos e lamentos.
De instante a instante ia o tufão crescendo.
.
Chamei Veludo. Ele seguiu-me. Entanto
A fremente borrasca me arrancava
Dos frios ombros o revolto manto.
E a chuva meus cabelos fustigava.
.
Despertei um barqueiro.
Contra as ondas coléricas vogamos.
Dava-me forças o torpe pensamento.
Peguei num remo e com furor remamos.
.
Veludo à proa olhava-me choroso,
Como um cordeiro no final momento.
Embora! Era fatal! Era forçoso,
Livrar-me enfim desse animal nojento.
.
No alto mar ergui-o nos meus braços
E arremessei-o às ondas, de repente.
Ele gemeu movendo os membros lassos,
Lutando contra a morte, era pungente.
.
Voltei à terra… Entrei em casa…
O vento zunia sempre na amplidão, profundo,
E pareceu-me ouvir o atroz lamento
De Veludo nas ondas moribundo.
.
Mas ao despir dos ombros meus o manto
Notei – oh, grande dor –,
haver perdido uma relíquia
Que eu prezava tanto.
.
Era um cordão de prata. Eu tinha-o unido
Junto ao meu coração constantemente,
E o conservava no maior recato,
Pois minha mãe me dera essa corrente
E suspensa na corrente, o seu retrato.
.
Certo, caíra além, no mar profundo,
No eterno abismo que devora tudo.
E fora o cão, fora esse cão imundo
A causa de meu mal. Ah, se Veludo
.
Duas vidas tivera, duas vidas eu arrancara
Àquela besta morta, àquelas vis
entranhas Corrompidas…
Nisto, senti uivar à minha porta.
.
Corri… Abri… Era Veludo. Arfava.
Estendeu-se a meus pés e docemente
Deixou cair da boca que espumava,
A medalha suspensa da corrente.
.
Fora crível, Oh, Deus! Ajoelhado junto ao cão,
Estupefato, absorto, palpei-lhe o corpo
Estava enregelado. Sacudi-o.
Chameio-o. Estava morto.
.
MÁRIO ALBERTO DE AZEVEDO
out 27, 2017 @ 15:41:26
Conheci esta poesia entre os anos 1953/1955, quanto fazia o extinto curso primário, e nunca mais a esqueci, pela sua beleza embora triste a história que nos emociona e encanta. Hoje estou repassando-a para minhas filha e neta, ambas cuidadoras de cães e gatos, participando de um voluntariado em nossa Aracaju (SE).
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CONCEICÃO CASTRO
abr 05, 2016 @ 18:26:07
LINDO ESSA POESIA.; MEU PAI GOSTAVA MUITO.
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Rômulo Rostand
maio 17, 2015 @ 22:49:17
Gravei “História de um Cão” em áudio e disponibilizei no blog Voz Verso e Prosa: http://vozversoeprosa.blogspot.com.br/
Também estou aguardando a gravação, da mesma poesia, por um amigo meu profissional da voz. Quando ele gravar irei substituir o áudio atual pela produção dele.
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orisval
maio 21, 2015 @ 09:44:00
Ouvi a gravação. Não gostei. A pessoa apenas leu com ênfase, sem emoção, sem energia. Esta poesia, quando bem declamada, com sentimento, faz chorar. Orisval
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Romulo Rostand
maio 28, 2015 @ 10:19:00
Ok. Orisval. Como adiantei no e-mail, estarei substituindo a gravação. Realmente o áudio atual está devendo na interpretação. O novo áudio terá a interpretação de Ricardo Moresi.
Estou em trânsito. Tão logo retorne postarei o novo áudio. Sinalizar eu aqui. Obrigado pelo seu retorno. Abraço.
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joão Vicente da Costa
out 23, 2016 @ 01:30:50
Historia de um cão é um lindo poema de Luiz Guimarães Junior que eu, bisavô lia para minha filha ( hoje avó) quando ela era criança.
Corrija-se a palavra RASTEIRO por RAFEIRO, no 4º quarteto de outras reproduções.
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orisval
abr 05, 2015 @ 10:57:04
Republicou isso em PENSANDO BEM….
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Leopercio TureLLo
abr 03, 2015 @ 11:32:41
O poema é de Luiz Guimarães…
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neusa maria vieira da silva
out 24, 2014 @ 07:05:10
Comovi-me com este poema quando estava no primário e volto a rele-lo agora com a mesma emoção. Belíssimo.
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Maria Neide Oliveira Lima
fev 02, 2014 @ 21:00:00
Eu conhecí aesta poesia quando era criança e ela sempre me fez chorar.
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Nielson Varela
jul 21, 2013 @ 17:53:13
Conheci essa poesia através de meu pai, que me apresentou ela eu tinha acho que uns 8 anos de idade. Me apaixonei pelos cachorros e pela poesia.
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Jose Ferlucio Soares
maio 25, 2013 @ 15:15:44
Quando criança, costumava ler para meus amigos mais jovens , historias, como se dizia na minha terra, lá no Ceará, de trancoso, só que ao ler este poema, não conseguia terminar: deixava o livro e saía pois vinham-me lágrimas nos olhos e os meninos começavam a “mangar” de mim.
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Rômulo Rostand
maio 08, 2013 @ 22:25:22
Pessoal, a quem interessar, o livro é Crestomatia: excertos escolhidos em prosa e verso dos melhores escritores brasileiros e portugueses. O autor é Radagasio Taborda.
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Luís Flávio Accioly Cavalcanti
maio 07, 2013 @ 01:48:43
Em minha infância, minha mãe, costumava-nos ninar declamando essa poisia…
Terrível!!!…. (Aterrador).
https://www.facebook.com/ReceptivoSJ
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luma rosa
jan 21, 2013 @ 15:55:39
Existe uma dúvida quanto a autoria desse poema, se do pai ou do filho de mesmo nome. Alguém poderia informar?
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Cleomar Albuquerque
maio 14, 2012 @ 11:54:31
Chorei, emocionada, ao ler este poena, que traz doce lembrança de minha infância – meu pai costumava declamá-lo. Obrigada por me fazer sentir, novamente, esta emoção. Cleomar
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Talma Lennon
fev 08, 2012 @ 21:20:26
Eu ganhei esta história de um ex namorado quando eu tinha 12 anos… nunca mais esqueci esta triste história e hoje encontrei. Ela é originária do FRANCÊS. Valeu!
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Konça Bandeira
fev 03, 2012 @ 20:41:25
MINHA MÃE LEU ESSE SONETO PARA MIM QUANDO EU TINHA 5 ANOS.ACHEI MUITO TRISTE ,PORÉM BONITO,NUNCA ESQUECI.PROCUREI POR ELE DURANTE ANOS ,POIS O LIVRO SE PERDERA NUMA MUDANÇA.HOJE PESQUISANDO O ENCONTREI. VELUDO PODERIA SER UM CÃO ATUAL POIS EXISTEM TANTOS ‘VELUDOS’ POR AÍ SOFRENDO POR CAUSA DA CRUELDADE HUMANA.
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RODRIGO BRITO
dez 10, 2010 @ 10:30:41
Mano, o autor da poesia História de um cão e´LUIS GUMARÃES.
Só p’ra constar. Eu solicirei num cebo em fortaleza uma Crestomatia ed. 1932. estou também a procura do livro NOVA SELECTA(estudei por ela no exame de admissão ao ginásio) ela tem, nas diversas poesias, uma que também fala de um cão e intitula-se
“GELÉ”. Esta não estou encontrando em lugar nenhum.
um abraço
Rodrigo.
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Teresa-Tetê Bispo
dez 01, 2010 @ 00:51:05
Eu também já havia pensado em pedir a publicação dessa poesia, que muito me comove e me deixa a pensar como má é a humanidade, como são mesquinhas, avarentas, insensiveis as pessoas, de um modo geral; claro que toda regra tem exceção, mas com certeza só uma minoria não se inclui nesse mundo ignóbil no qual o autor explica muito bem através desses seus versos.
A cidade onde o escritor declamou “HISTÓRIA DE UM CÃO” , chama-se Paulistana; conheci-a bem e lá vivi momentos tristes que até hoje permanecem em minha memória…
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orisval
dez 03, 2010 @ 12:03:56
Têca, pratique este conselho de um sábio indiano: “escreva as tristezas na areia e as alegrias no mármore”. O que fica escrito na areia o vento, a chuva ou as ondas do mar apagam. O que fica escrito no mármore permanece por toda a vida. Olhe para o mármore de sua vida e não se volte para a areia que ela contenha. Nós não viemos a este mundo para idolatrar a dor, o sofrimento e a mágoa. Viemos para cá aprender com estes professores a sermos melhores do que já fomos. Portanto, agradeça ao Criador por Ele nos ter dados tais professores. Assim como o fogo forja no ferro o aço, também assim a dor forja na alma o Espírito.
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orisval
nov 24, 2010 @ 09:46:28
Atendendo a um pedido, eis a poesia HISTÓRIA DE UM CÃO. Eu não me recordo do nome do autor, mas recordo bem de seus versos que declamei em uma escola no sul do Piauí, quando tinha 13 anos. Também não me lembro do nome da cidade que, por sinal, desapareceu sob um açude em construção quando lá estive, em 1953.
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RODRIGO BRITO
dez 09, 2010 @ 19:43:15
A cidade era Paulistana, onde você declamou a poesia. Busquei na estantevirtual.com.br e descobri o livro Crestomatia, só que tem uma série
deles(arcaico) e a única que acho ser a que vc. estudou deve custar 300,00.
entre no endereço e veja(minha pesquisa foi através do google. abs.
Rod.
Em tempo: a cidade de Paulistana ainda está lá, só que metade foi inudada. A praça onde ficava a matriz seguindo para o lado da saída para a capital continuou. Hoje está modificada com ruas asfaltada emuito carros.
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ORISVAL BRITO
dez 10, 2010 @ 08:51:19
É bom saber que Paulistana não foi para o fundo do lago totalmente. Quanto à Crestomatia, não quero mais. Está perdida no meu passado. Nenhum de meus filhos se interessaria por ela nem por curiosidade, sabe. O negócio agora são os i-pad e coisas parecidas. Abraço do mano.
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